Um ano depois, sobreviventes do tsunami no Chile esperam por ajuda em favelas

12-03-2011 13:54

 De Llico a Dichato são 150 quilômetros, quase o dobro da distância entre São Paulo e o porto de Santos. As duas vilas são como pontas de um arco que abraça uma parte do Oceano Pacífico na costa centro-sul do Chile. Aqui, a maré gelada e cinzenta desperta muito medo.   No dia 11 de março do ano passado, ondas gigantes engolfaram toda essa região, tragando tudo – ruas, navios, portos, casas, escolas e hospitais. Além da completa devastação no arco entre Llico e Dichato, o maremoto também provocou danos severos em todo o litoral do Biobío e do Maule. As pessoas que viviam nestas cidades perderam tudo em três minutos e muitas, até hoje, continuam sem nada.              "Dá pena passar ali, onde eu morava", disse Gamalier Elgueta, de 24 anos. “Não tem nada. É uma sensação estranha porque é mais que tristeza. Eu não consegui salvar nem a minha roupa”, diz o jovem apontando para uma faixa de areia vazia. 


Hoje, o governo chileno ainda luta para dar conta de uma lista de urgências provocadas pela tragédia que deixou 524 mortos e 31 desaparecidos. O terremoto de 8,8 graus na escala Richter, seguido por um tsunami devastador, inabilitou um terço das escolas do país poucos dias antes que os alunos voltassem às aulas. Um terço dos hospitais também amanheceu destroçado. Equipes de emergência levaram uma semana para chegar a estas cidades, onde pessoas vagavam no meio do que pareciam ser destroços de um bombardeio aéreo, em busca de água potável. 

No porto de Talcahuano, com 171 mil habitantes, as construções localizadas de frente para o mar foram arrasadas. Ainda há cascos de navios virados nos atracadouros, galpões em ruínas e escolas com os vidros quebrados e paredes repletas de rachaduras. 

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A zona costeira está hoje cheia de placas que avisam que esta é uma “zona de risco de tsunami” e outras que apontam para “rotas seguras de evacuação”. Há um ano, não havia nada disso. E muitos morreram por falta de informação. 

Na maioria dos casos, as vilas deram lugar a um amontoado de escombros. Em outros, ficaram silenciosos vazios lunares onde o mato cresce. Depois da noite de horror, os moradores passaram meses vivendo debaixo de lonas plásticas nas serras que limitam o litoral. Os chamados “acampamentos” abrigavam famílias inteiras. 

Já no fim de março, a multidão de jornalistas foi deixando o país. O mundo voltou seus olhos para alguma nova tragédia, mas o drama dos chilenos continuou e, em muitos momentos, foi ainda mais angustiante, já que para muitas famílias a simples sobrevivência tornou-se algo impossível em condições tão precárias. 

João Paulo Charleaux/Opera Mundi 
 
"Que eles venham aqui passar um ou dois anos", disse a aposentada Eufrasina Lozano Astra, de 75 anos 

O governo do presidente Sebastián Piñera, que assumiu apenas 12 dias depois do terremoto, transferiu os sobreviventes para “aldeias” – bairros improvisados, com cabanas de madeira e teto de zinco, mas sem forro, sem isolamento térmico e sem banheiro. Estes locais – em alguns aspectos tão precários quanto qualquer favela – contam com luz elétrica, mas a água limpa chega em pontos de distribuição de uso comum. As aldeias não têm asfalto nem calçamento. As ruas de terra e pedrisco viram piscinas de barro no inverno. As casas são seguras, mas escuras, úmidas, apertadas e insalubres, especialmente para crianças e idosos, que parecem compor o grosso da população local. Os banheiros são químicos e coletivos. 

Piñera diz que cumpriu 50% da tarefa de reconstruir o país em seu primeiro ano de governo. A outra metade parece ser, precisamente, a habitação. Metade dos moradores das zonas costeiras devastadas desaprova o governo atual. No aniversário de um ano da tragédia, o presidente foi constrangido por um grupo de moradores das aldeias que o cercaram na saída de uma rádio em Concepción, onde ele havia dado uma entrevista de balanço da reconstrução. Exigiram, mais do que qualquer outra coisa, dignidade. 

“A polícia não deixa a gente nem chegar perto do presidente. As autoridades não vêm aqui, não sabem como passamos o último ano e, por isso, dizem que teremos de viver nestas aldeias por um ano mais”, disse ao Opera Mundi Israel Chávez, pescador de 41 anos que, depois de perder tudo no tsunami de 2010 passou a viver na Aldeia El Molina, em Dichato. “Aqui é uma zona gelada, de vento forte e tempestade. As crianças vivem doentes, os velhos não conseguem andar da porta para fora por causa das ladeiras e do barro, não temos água corrente. Isso aqui é um horror”, resume Chávez enquanto martela uma tábua na parede de casa, preparando-se para o inverno que dará os primeiros sinais no próximo mês. 

João Paulo Charleaux/Opera Mundi 
 
Tiosfila Marín, de 74 anos, uma das vítimas: "Não tenho vontade de nada mais. Cansei até de chorar" 

A 20 metros, parada na porta de casa, na mesma aldeia, Tiosfila Marín, de 74 anos, observa a cena calada, com olhar aflito e uma das mãos sobre o pescoço. Desde que acordou boiando na água do mar, um ano atrás, Tiosfila perdeu a vontade até de falar. Esqueceu a idade. Quando perguntada, entra em casa e volta à soleira com o documento de identidade na mão. O filho ajuda a fazer a conta do nascimento para cá. “Não tenho vontade de nada mais. Cansei até de chorar”, disse. 

Opção pela crueldade 

A precariedade das aldeias não é fruto da falta de recursos, mas de uma opção cruel. Piñera diz que, se promover melhorias demais nestas comunidades, “o que foi criado para ser provisório, terminará como definitivo”. A estratégia parece ser a de pressionar os moradores para que deixem as aldeias quando as casas definitivas estiverem prontas, o que só deve ocorrer em 2012, segundo projeção do governo. 

Foi o que explicou ao Opera Mundi o deputado governista pela região de Talcahuano, Jorge Ulloa. “Se nós urbanizarmos as aldeias, elas terminarão como vilas definitivas. Estes locais têm de funcionar como abrigos provisórios. É isso (essa precariedade das moradias atuais) que nos dá a premência de construir as novas casas”. Segundo ele, Ulloa a simples construção de banheiros individuais nas cabanas serviria de incentivo para que os moradores permanecessem nos locais provisórios de forma definitiva. 

“Que eles venham aqui passar um ou dois anos, então”, disse a aposentada Eufrasina Lozano Astra, de 75 anos, moradora de uma destas aldeias na cidade de Dichato. “Acho uma política insensível. Nós aqui temos de usar penicos de noite porque não podemos caminhar até os banheiros coletivos. Isso é vida? Dois anos assim?”, pergunta Eufrasina, enquanto reaviva as brasas sob a panela onde prepara o jantar numa fogueira acendida do lado de fora de sua cabana. Com o calor do fogo, o gato Tsunami se aproxima da senhora, que o toma no colo e o acaricia enquanto se levanta e olha o mar de cabanas ao redor. “Esse aqui”, diz, mostrando o gato, “veio viver comigo, debaixo da minha lona, nos meses que passei nas montanhas, com medo do mar. Agora, veja se isso é vida. Acho que nem um animal devia viver assim.”